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segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Zé Munhanha, uma saudade

Zé Munhanha, uma saudade

Zé Munhanha era um garoto de seus doze anos, que morava com sua família e mais cinco irmãos em um pequeno vilarejo de uma Fazenda Experimental, mais conhecida por Campo de Sementes.

Ali também habitavam mais uma dezena  de famílias que viviam do reflorestamento e   plantio de árvores, em sua grande maioria  mudas frutíferas.

Seu pai e os dois irmãos maiores ajudavam no trabalho da lavoura, e, como bons tocadores de gaita, viola  e sanfona,  alegravam as festas juninas, enquanto suas três irmãs estudavam e  auxiliavam a mãe nos cuidados com a horta, galinheiro e na limpeza da casa, que não era grande, mas muito bem cuidada, enfeitada de flores e imagens de santos por todo lado.

Um ambiente tranqüilo e feliz era o Campo de Sementes.

Todos os jovens e crianças estudavam em uma cidadezinha próxima, e o transporte era fornecido pelo engenheiro agrônomo, às vezes era um caminhão FNM, em  outras uma pick-up, com bancos mas sem cobertura, o que representava um esforço maior quando chovia naquele local.

 Todos se ajudavam como podia, ou como Deus queria, os guarda-chuvas eram comunitários, assim também as capas de lona dos pais lavradores asseguravam o percurso de vinte minutos de trajeto até o colégio estadual, onde alguns freqüentavam o grupo escolar, outros ginásio, ou ainda curso clássico e científico.

Mas, Zé Munhanha, um garoto dotado de necessidades especiais, gostava mesmo era de petecar e apreciar os jogos de bocha dos adultos.

Peteca artesanal, feita por suas próprias mãos, com meias velhas recheadas de retalhos e penas de galináceos, recolhidas pelo quintal da casa,  quando estas se renovavam, ou quando os pobres bichinhos viravam almoço da humilde família.

Tinha pena de galo, galinha, peru, pato, galinha de Angola, ganso e até de pavão.

Essas eram as mais disputadas, quando por vezes eram cedidas pelo feitor da fazenda, pois se destinavam ao adorno da casa de sede do engenheiro agrônomo responsável pelo recanto.

Havia até trocas com outros garotos e algumas eram pintadas com urucum para dar mais vidas e cor aos brinquedos.

Faziam campeonatos nas férias, reuniam toda a comunidade e em especial as meninas, que iam contemplar o colorido e a façanha daqueles objetos e de seus donos.

Nesses dias, a felicidade de Munhanha era ímpar, pois em meio a tantas petecas que subiam e desciam, a sua era sempre a mais aguardada, certamente pelo carisma e gosto diferencial  do garoto.

Durante todo o período de férias e recesso escolar lá estavam os festivos petequeiros, disputando ou somando prazeres que garantiam-lhes prêmios como: peão de corda, bolas de gude, pipas e até guloseimas preparadas pelas mães.

Quando não, os passeios de charrete conduzidos pelos pais, outra diversão bastante animada e até as meninas podiam participar, animando o cortejo com belos cantos folclóricos aprendidos na escola.

E assim também era a vida das petecas: um impulso bem direcionado com as mãos masculinas e elas, tais quais obedientes garotas, subiam e desciam verticalmente para as mãos de seus donos, enfeitando o céu anil daquele Campo Experimental todo coberto de verde.

O ponto de partida era um campo de amendoim com suas flores amarelas, porém os magros pés descalços não agrediam o solo, e, com tanto cuidado eles recolhiam seus objetos, com precisa rapidez para que não se estragassem.

Não pense que as petecas - estrelas acrobatas - não eram bem cuidadas o ano inteiro; ao contrário, depois de usadas eram espanadas, reajustadas e iam direto para as caixinhas enquanto aguardavam em forma a próxima disputa.

Zé Munhanha fabricava muitas petecas, pois elas animavam a sua vida de maneira especial, como só os que o conheciam podiam avaliar e admirar, tarefa nada difícil para quem vive em perfeito espírito comunitário.

Em dias de aulas, só parava de brincar  quando a mãe chamava para se aprontar para a escola.

A peteca ia junto, bem guardadinha no embornal, quem sabe, no recreio, às escondidas e com a ajuda da inspetora Dona Déia, pudesse brincar um tiquinho.

Porém, nem tudo era fácil para o Munhanha: sua maior dificuldade era aprender o catecismo que Dona Rosa ministrava religiosamente preparando assim toda a criançada para a Primeira Eucaristia.

[...] - Quem é Deus? Quais os mandamentos da Santa Igreja? Repita o Ato de contrição [...]

Nada disso Zé Munhanha gravava e, muitas vezes, sua mãe o sovava, o que o levava a esconder-se a tarde toda, acabrunhado de vergonha.

Seus amigos, porém, não se importavam se ele não aprendia rezar, mas às vezes faziam troças e inusitadamente o Zé partia para a briga, quase sempre apanhando sem dó.

Pobre do Zé Munhanha, tão estranho e tão solicitado!

Em dias de chuva, quando quase ninguém saía de casa para brincar, lá ia o Munhanha dando seus pulinhos, rosto debaixo da chuva e batucando os dedinhos como se fosse sempre carnaval, intimando os mais afoitos à folia.

Eu também, menina agitada, adorava vê-lo e já me excitava por sair daquele quarto fechado, afinal quem que aguenta não brincar, nem que seja sob um raro dia de chuvinha?

Sol e chuva, casamento de viúva, chuva e sol, casamento de espanhol, rodando e correndo de mãos dadas íamos aos mangueirais recolher as mangas foguinho caídas com a chuva. Que privilégio!

A chuva até cessava, mas a mãe chamava para dentro se não ficaria doente e eu me despedia de meu amigo querido, um verdadeiro anjo de bondade e entusiasmo.

Num certo dia de festa junina, lembro-me bem, rezamos o terço e a ladainha de Nossa Senhora  para comemorar a festa de São Pedro, na casa da catequista Dona Rosa,  que tinha um filho do mesmo nome do santo, e, em procissão fomos todos erguer o mastro com a imagem dos santos com era feito todos os anos .

A casa ficava num espaço próximo a uma mina de água e, por infelicidade, na hora da queima dos fogos, algum desprevenido soltou uma bomba grossa que caiu perto da água e, enquanto todos gritavam “gorou”, que quer dizer não estourou, Zé Munhanha, inocentemente foi pegar para conferir e...

A tragédia aconteceu. Desencanto total. A bomba demorou, mas estourou na mão do menino, que passou a sangrar muito, diante de todos; a ajuda vinha de todos os lados, jogavam água da mina que diziam ser curativa, os homens faziam sangria, enrolavam os dedos e a mão do menino que gritava de dor..

Nem é preciso dizer que a festa terminou por aí, com o corre-corrre a buscar o motorista que notificou o engenheiro, na tentativa de reanimar o menino até que chegasse à Santa Casa para o procedimento cirúrgico.

Lembro que chorávamos muito e pedíamos a São Pedro, Santo Antonio, São João e até São José para que não deixasse o pior acontecer àquele amigo muito mais que especial para todos nós.

E daquela longa noite a lua e as estrelas se despediram, em cinzas tremulantes as espigas de milho e batatas-doce torravam nas fogueiras, enquanto as famílias se retiravam para suas casas em orações.

E os três santos, lá do alto do mastro, tremulantes, pareciam querer consolar tantos corações contritos...

Ao amanhecer todos ficamos sabendo da triste notícia de que o Zé perdera dois dedos da mão direita!

A tristeza foi geral. E agora, como empinaria pipas ou teria a manobra firme para impulsionar suas petecas?

Inacreditável dizer, mas quando fomos visitá-lo, o Zé sorria com a mão enfaixada, como a dizer “estou aqui e logo estaremos brincando nos campos de amendoim”...

Alguns meses depois, já quando chegava setembro, as flores do campo de amendoim emprestavam seu colorido para brilhar na reestréia do Zé Munhanha no campeonato de pipas e petecas.

Todos em volta do amigo incentivavam-no a empinar sua pipa com a mão esquerda e, futuramente, com melhor cicatrização, retomaria os treinos para ganhar força no arremesso de sua peteca.

Mas, Zé Munhanha, que amava petecar, com aquela cara de quem está meio atrapalhado, acabou fazendo exatamente o contrário: pegou a peteca com sua mão esquerda, ensaiou algumas vezes e lançando-a para a mão direita com toda a força de sua emoção e alegria arremessou-a tão alto, que ninguém conseguia vê-la.

Ninguém também conseguiu vê-la voltar. Estupefatos, olhavam por todos os lados para ver se não se encontrava no chão.

Nada! Nem sinal da peteca. Nada a não ser o espanto geral. Todos ensimesmados pelo ocorrido se entreolhavam aflitos.

Só Munhanha olhava o céu, dava pulinhos e batia as mãos, um toque mais suave, mas intenso, como se tivesse certeza de que ela retornaria.

Não havia explicação. A peteca que todos viram nas mãos do menino, como que num mistério desapareceu no infinito.

E a peteca do Munhanha não retornou, nem naquele, nem nos próximos dias, o que foi deixando o menino triste e sempre fechado em sua casa.

Tentávamos reanimá-lo, contar histórias, pular corda, mas parece que aquele brinquedo era o que dava sentido à vida do menino.

Passaram-se mais dois anos e chegaram as festas juninas. Ninguém mais tinha prazer em fazer o ritual sacro- festivo completo.



Era dia de chuva e os adultos do Campo de Sementes resolveram apenas celebrar o terço para homenagear o santo que tinha as chaves do céu – São Pedro e oraram com maior fervor pela cura do Munhanha, o garoto da peteca.

“Se não podia reaver os dedos, pelo menos que o santo ajudasse a tirá-lo daquele estado de prostração acabamento” – pediam em seu interior.

Entoávamos com seriedade dantes nunca vista, a ladainha pedindo aos santos a proteção divina, quando após um minuto de silêncio, Dona Rosa, a catequista invocou “São Pedro, rogai por nós” e todos ardentemente responderam “Amém”!

Voltando ao quintal para erguer o mastro, a comitiva sem saber o que acontecia vislumbrou como que envolto em fumaça, a imagem do Santo que devolvia ao Zé sorridente, a sua peteca.

Peteca daqui, peteca dali e o Zé Munhanha, sob um facho azul-esverdeado de luz que vinha do céu, saltitava e unia suas mãos em palmas, a sorrir nos campos de amendoim...

Parece que o Campo de Sementes continua a produzir até hoje muitas sementeiras, regadas  de amor e de fé , tendo merecido por parte dos moradores que ainda por lá habitam de  Recanto de petecas munhanheiras.

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