www.annaservelhere.blogspot.com

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

CONTO: O PRIMEIRO ADEUS

 CONTO: O PRIMEIRO ADEUS

Chegada a hora de partir, ela tratou de juntar tudo.
Afinal , para começar, na cidade grande, não lhe era suficiente carregar somente os sonhos, mesmo que fossem tão grandes a ponto de neles se escorar, pronta a  tudo enfrentar.
Estes, eram sem dúvida nenhuma, enormes, do tamanho do ideal que a impulsionava para a frente, rumo ao desconhecido, que,  em sua fantasia lhe chegava  em forma de um enorme cavalo alado, e a levava a galopar  pela imensidão do espaço, ao encontro da maior estrela.
Juntou rapidamente tudo o que possuía: algumas roupas, poucos sapatos, os brincos, anéis, objetos de uso pessoal, ah! carregou junto com tudo isso, a sua família: pais, irmãos, sobrinhos, grande parte do seu tudo até então conquistado.
Do alto do caminhão de mudanças correu a vista por aquele que havia sido até então seu paraiso: sentiu o perfume das flores, experimentou novamente o gosto das frutas, ouviu embalada o canto dos passarinhos amigos, tudo isso indispensável ao fortalecimento da alma que agora insistia em se vestir de aventureira.
Também não se esqueceu de amontoar à bagagem, múltiplas e prazenteiras experiências ali vividas.
Mantinha constante o mesmo espírito de luta, herança paterna do pai recentemente falecido, aquele que lhe ensinara no exercício sábio da meditação, dia-a-dia praticado, que: "Partir é sempre um começo, mas chegar lá nem sempre é o fim"...
- Nany! A voz da mãe trouxe-a novamente ao momento presente.
- Nany, minha filha, o que é que fazemos com o bichano? A galinha, o papagaio, será que adianta levar? Hão de sobreviver na viagem?...
De fato,se resistissem à quilometragem percorrida, à nova vida poderiam não se habituar, acostumados que foram, à liberdade dos campos. Melhor deixar, disse à mãe...
Nany, do alto dos seus  15 anos, pensava ja, como adulta, 4a. filha de uma família de 7 irmãos. E como tal, reavaliava as emoções vividas até então, ali, no aconchego do lar, entre prazeres campestres, e, pensando bem, não era pouco tudo o o que desfrutara da vida que levava, lá naquele pedaço de terra, onde estudar para os mais jovens e trabalhar para os adultos, resumiam a maior atividade. Fora, é claro, desbravar matas em busca do fruto nativo, escalar altas árvores, desafiar a si e a qualquer obstáculo que se interpunha entre ela e os seus prazeres.
- Mãe, tenho certeza que a Tereza há de ficar muito contente se lhe entregarmos o Muxoxô, o Relo e a Lica, já que o Carlinhos e o Beto sempre se deram muito bem com todos eles.Não se esqueça de entregar-lhe também as chaves dos fundos para retirar da dispensa, os quadros que ali estão.
Os quadros! Amarelaram nas paredes da sala, especialmente aquele da Virgem com Seu Filho, com o coração trespassado por espinhos, diante do qual tantas vezes rezara.
Tinha também aquele da Santa Ceia, onde os apóstolos eram crianças, filmadas na região por um fotógrafo da cidade, que chegou a conquistar  prêmios  por essa sua obra de arte.
Foi revendo, cômodo por cômodo, os objetos que ali permaneciam, misturados às lembranças que cada   um deles lhe trazia: o velho torrador de café, das tardes quentes e preguiçosas, onde, em companhia das irmãs se ocupava em preparar o café caboclo,torrado entre o cacarejar das galinhas caipiras, cada uma com seu nome,dentre elas,  a Lica, preferida por ser a mais alegre, cantarolando o dia todo; do moedor de frutas, regalo de toda sua gente, pelos doces saborosos estocados nas gavetas do velho guarda-comidas,  aproveitando a generosidade das frutas de época.
Estava agora em seu quarto, onde, colchões de crina animal expunham-se nus, vítimas dos "puxa-puxa" nas brincadeiras travessas dos 7 filhos, em dias de chuva.
À sua frente, o "quarto dos fundos", onde  jogado a um canto estava o moedor de milhos  e café, o que a fez lembrar dos castigos aplicados quando o aproveitamento escolar não agradava ao pai, sempre muito exigente.
Retornou à varanda, e uma lágrima, oportunamente escorrida de seus olhos, molhou o par de antúreos vermelhos, cujas folhas estranguladas traziam-lhe a lembrança das bolas que ali foram arremessadas. Removeu-o e avistou aquele espaço descorado do vermelhão , que a mãe tanto insistia para que se encerasse.
Voltou ao interior da casa e postou-se diante dos degraus que davam para o tanque aberto e para o quintal.
Ao redor do tanque, os arreios, a velha montaria, de tantos galopes pelos campos à procura do "Negrinho do Pastoreio", fantasia criada pela imaginação das irmãs mais velhas. Só serviam agora como adorno daquele lindo cenário campestre. Avistou o velho forno,construido com a ajuda da avó materna, que com sua família morou algum tempo, antes de se transferir para a casa de outro filho, na capital; a velha parreira de uvas, o mais velho pé de amoras, a outra escadaria que levava à horta, tantas vezes regada por suas mãos.
No quintal, subiu no pé de fruta do conde, e lá do alto avistou o quintal do vizinho, a três casas da sua, onde a mangueira carregada de mangas conduziu-a àquele último dia de aulas, primeiro das férias semestrais, quando seu primo, subindo para apanhar a única manga "foguinho" escondida  nas pontas, despencara sobre a caixa de ferramentas deixada no chão,  para, tão logo apanhasse a fruta, ajudaria o pai nos  reparos de sua bicicleta. Nunca conseguiu apagar da lembrança aquele dia, pois foi quando presenciou pela primeira vez um defunto no caixão.Tinha em mente, desde então, que a morte está sempre e impiedosamente perto de momentos muito felizes.
Apanhou algumas frutas do pomar, sempre próspero, e com elas encheu algumas sacolas: de manga, laranjas, abacate, banana...
Voltou para o interiorda casa, onde a mãe e os irmãos,ansiosos a aguardavam.
- Rápido, mana. O motorista tem pressa, que o sol já vem vindo e a viagem é longa, pretende chegar lá antes do escurecer.
- Vá se despedir de suasamigas e da vizinhança, enquanto acabamos de carregar...
Ela fez questão de primeiro  trancar a casa. Uma a uma, as portas internas , iam sendo fechadas. Diante da copa, onde em épocas de Natal se armava o presépio, demorou mais um instante: o suficiente para visualizar as horas prazenteiras em que se punha a  percorrer os campos junto de suas irmãs, à procura de "lodo" e "graminha" para enfeitar o lago artificial, onde  peixinhos feitos de barro atraiam a atenção da garotada da redondeza.
Última imagem: a da fé!
O tempo se esgotando, Nany foi saindo. Trancadas as portas, encerrava naqueles cômodos, velhos sonhos - os mais belos! - de sua vida.
Lá fora, em pouco tempo, despediu-se de todos os amigos. Os que com ela, lado a lado, estiveram sempre: nos piores e nos melhores dias, desses quinze anos que já lhe pareciam ser mais.
Mais uma vez, a voz da mãe lhe trazia a força necessária para recomeçar:
- Vamos, Nany! Rápido filha, estamos todos esperando por você...
Nany sorriu , agora descontraidamente, para um punhado de pessoas.
Do alto da caminhão, amontoada às trouxas de roupas, acenou com a mão, gesto firme de quem leva e deixa atrás de si, grandes marcas...

Na distância, o primeiro adeus, a primeira despedida!...

Nenhum comentário: