CONTO: O PRIMEIRO ADEUS
Chegada a hora
de partir, ela tratou de juntar tudo.
Afinal , para
começar, na cidade grande, não lhe era suficiente carregar somente os sonhos,
mesmo que fossem tão grandes a ponto de neles se escorar, pronta a tudo enfrentar.
Estes, eram sem
dúvida nenhuma, enormes, do tamanho do ideal que a impulsionava para a frente,
rumo ao desconhecido, que, em sua
fantasia lhe chegava em forma de um
enorme cavalo alado, e a levava a galopar
pela imensidão do espaço, ao encontro da maior estrela.
Juntou
rapidamente tudo o que possuía: algumas roupas, poucos sapatos, os brincos,
anéis, objetos de uso pessoal, ah! carregou junto com tudo isso, a sua família:
pais, irmãos, sobrinhos, grande parte do seu tudo até então conquistado.
Do alto do
caminhão de mudanças correu a vista por aquele que havia sido até então seu
paraiso: sentiu o perfume das flores, experimentou novamente o gosto das
frutas, ouviu embalada o canto dos passarinhos amigos, tudo isso indispensável
ao fortalecimento da alma que agora insistia em se vestir de aventureira.
Também não se
esqueceu de amontoar à bagagem, múltiplas e prazenteiras experiências ali
vividas.
Mantinha
constante o mesmo espírito de luta, herança paterna do pai recentemente
falecido, aquele que lhe ensinara no exercício sábio da meditação, dia-a-dia
praticado, que: "Partir é sempre um começo, mas chegar lá nem sempre é o
fim"...
- Nany! A voz da
mãe trouxe-a novamente ao momento presente.
- Nany, minha
filha, o que é que fazemos com o bichano? A galinha, o papagaio, será que
adianta levar? Hão de sobreviver na viagem?...
De fato,se
resistissem à quilometragem percorrida, à nova vida poderiam não se habituar,
acostumados que foram, à liberdade dos campos. Melhor deixar, disse à mãe...
Nany, do alto
dos seus 15 anos, pensava ja, como
adulta, 4a. filha de uma família de 7 irmãos. E como tal, reavaliava as emoções
vividas até então, ali, no aconchego do lar, entre prazeres campestres, e,
pensando bem, não era pouco tudo o o que desfrutara da vida que levava, lá
naquele pedaço de terra, onde estudar para os mais jovens e trabalhar para os
adultos, resumiam a maior atividade. Fora, é claro, desbravar matas em busca do
fruto nativo, escalar altas árvores, desafiar a si e a qualquer obstáculo que
se interpunha entre ela e os seus prazeres.
- Mãe, tenho
certeza que a Tereza há de ficar muito contente se lhe entregarmos o Muxoxô, o
Relo e a Lica, já que o Carlinhos e o Beto sempre se deram muito bem com todos
eles.Não se esqueça de entregar-lhe também as chaves dos fundos para retirar da
dispensa, os quadros que ali estão.
Os quadros!
Amarelaram nas paredes da sala, especialmente aquele da Virgem com Seu Filho,
com o coração trespassado por espinhos, diante do qual tantas vezes rezara.
Tinha também
aquele da Santa Ceia, onde os apóstolos eram crianças, filmadas na região por
um fotógrafo da cidade, que chegou a conquistar
prêmios por essa sua obra de
arte.
Foi revendo,
cômodo por cômodo, os objetos que ali permaneciam, misturados às lembranças que
cada um deles lhe trazia: o velho
torrador de café, das tardes quentes e preguiçosas, onde, em companhia das
irmãs se ocupava em preparar o café caboclo,torrado entre o cacarejar das
galinhas caipiras, cada uma com seu nome,dentre elas, a Lica, preferida por ser a mais alegre,
cantarolando o dia todo; do moedor de frutas, regalo de toda sua gente, pelos
doces saborosos estocados nas gavetas do velho guarda-comidas, aproveitando a generosidade das frutas de
época.
Estava agora em
seu quarto, onde, colchões de crina animal expunham-se nus, vítimas dos
"puxa-puxa" nas brincadeiras travessas dos 7 filhos, em dias de
chuva.
À sua frente, o
"quarto dos fundos", onde
jogado a um canto estava o moedor de milhos e café, o que a fez lembrar dos castigos
aplicados quando o aproveitamento escolar não agradava ao pai, sempre muito
exigente.
Retornou à
varanda, e uma lágrima, oportunamente escorrida de seus olhos, molhou o par de
antúreos vermelhos, cujas folhas estranguladas traziam-lhe a lembrança das
bolas que ali foram arremessadas. Removeu-o e avistou aquele espaço descorado
do vermelhão , que a mãe tanto insistia para que se encerasse.
Voltou ao
interior da casa e postou-se diante dos degraus que davam para o tanque aberto
e para o quintal.
Ao redor do
tanque, os arreios, a velha montaria, de tantos galopes pelos campos à procura
do "Negrinho do Pastoreio", fantasia criada pela imaginação das irmãs
mais velhas. Só serviam agora como adorno daquele lindo cenário campestre.
Avistou o velho forno,construido com a ajuda da avó materna, que com sua
família morou algum tempo, antes de se transferir para a casa de outro filho,
na capital; a velha parreira de uvas, o mais velho pé de amoras, a outra
escadaria que levava à horta, tantas vezes regada por suas mãos.
No quintal,
subiu no pé de fruta do conde, e lá do alto avistou o quintal do vizinho, a
três casas da sua, onde a mangueira carregada de mangas conduziu-a àquele
último dia de aulas, primeiro das férias semestrais, quando seu primo, subindo para
apanhar a única manga "foguinho" escondida nas pontas, despencara sobre a caixa de
ferramentas deixada no chão, para, tão
logo apanhasse a fruta, ajudaria o pai nos
reparos de sua bicicleta. Nunca conseguiu apagar da lembrança aquele
dia, pois foi quando presenciou pela primeira vez um defunto no caixão.Tinha em
mente, desde então, que a morte está sempre e impiedosamente perto de momentos
muito felizes.
Apanhou algumas
frutas do pomar, sempre próspero, e com elas encheu algumas sacolas: de manga,
laranjas, abacate, banana...
Voltou para o
interiorda casa, onde a mãe e os irmãos,ansiosos a aguardavam.
- Rápido, mana.
O motorista tem pressa, que o sol já vem vindo e a viagem é longa, pretende
chegar lá antes do escurecer.
- Vá se despedir
de suasamigas e da vizinhança, enquanto acabamos de carregar...
Ela fez questão
de primeiro trancar a casa. Uma a uma,
as portas internas , iam sendo fechadas. Diante da copa, onde em épocas de
Natal se armava o presépio, demorou mais um instante: o suficiente para visualizar
as horas prazenteiras em que se punha a
percorrer os campos junto de suas irmãs, à procura de "lodo" e
"graminha" para enfeitar o lago artificial, onde peixinhos feitos de barro atraiam a atenção
da garotada da redondeza.
Última imagem: a
da fé!
O tempo se
esgotando, Nany foi saindo. Trancadas as portas, encerrava naqueles cômodos,
velhos sonhos - os mais belos! - de sua vida.
Lá fora, em
pouco tempo, despediu-se de todos os amigos. Os que com ela, lado a lado,
estiveram sempre: nos piores e nos melhores dias, desses quinze anos que já lhe
pareciam ser mais.
Mais uma vez, a
voz da mãe lhe trazia a força necessária para recomeçar:
- Vamos, Nany!
Rápido filha, estamos todos esperando por você...
Nany sorriu ,
agora descontraidamente, para um punhado de pessoas.
Do alto da
caminhão, amontoada às trouxas de roupas, acenou com a mão, gesto firme de quem
leva e deixa atrás de si, grandes marcas...
Na distância, o primeiro adeus, a primeira despedida!...
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