CRÔNICA: Pedro
Ganso
(Amarós)
"Quanta
gente, que ri, talvez existe
cuja única ventura consiste
em
parecer aos outros venturosa"...
Década de 60,
meados dos anos 1962/1965, dependências internas do CAVIGA (Colégio Capitão Virgílio Garcia),
cidade de São Simão, município de Ribeirão Preto, cidade intitulada "Vale da Saúde", por haver
protegido em outras épocas, seus habitantes, de um surto virótico epidêmico que
atingiu quase toda a redondeza, exceto aquela cidade, com seu clima favorável,
situada entre os vales.
Foi lá onde conclui
com bastante êxito meus estudos de primeiro grau.
Na saída do
páteo escolar, distribuidos em filas, milhares de alunos do ginásio, clássico,
científico e escola normal cumprem a rígida disciplina interna, encaminhando-se
para o horário de descanso; Ao terceiro toque do sinal, esparramam-se e se
avolumam ao redor das altas grades que circundam o colégio, situado entre ruas
que jamais foram afastadas, ( não obstante os inúmeros abaixos assinados da
comunidade local e das autoridades escolares daquela cidade).
Aos gritos,
disputam os lanches, que em sua variedade, faziam enorme sucesso : dos
salgadinhos a sorvetes em forminhas de gelo, até tamarindos e uvas japonesas -
frutas públicas colhidas pela petizada da redondeza, que no afã da concorrência
escalavam oportunamente altas árvores, buscando priorizar o gosto colegial.
O alvoroço é
grande, o tempo pouco , as emoções!...
...Sempre
bastantes, principalmente quando a atenção de alguns alunos é voltada para o
início da ladeira que conduz ao colégio, onde, trôpego e alinhado, se aproxima
com seu chapéu, se bem me recordo, marca "Prada", combinando
com o terno de linho engomado, sapatos envernizados e uma bengala de madeira de
lei adornada em beirais de prata, o nosso
distinto personagem (distinto demais!) para o estilo da época.
- Lá vem ele,
pessoal!...
- Vem manso como
sempre...
- Querem ver
como ele acelera rápido e chega até aqui num minuto?
Todos queriam, é
claro e sabiam exatamente como se divertir com tal proeza.
- Pedrooo! Hei, Pedro! O que é que hoje trazes
nos livros prá mim: Francês, Inglês ou Latim?...
- Diz em
Português, Pescoço de Ganso...
O velho,
alquebrado e extenuado ante as limitações que a idade, a deficiência física e
as más condições da caminhada lhe impunham, visivelmente contrariado com as
costumeiras injúrias, extravasa o
cansaço erguendo sua bengala e proferindo ameaças aos importunos, que as
revidam:
- Não chegue
muito perto que a grade está eletrificada,
Ganso...
- Estica o
pescoço, quem sabe ele nos alcança...
Em meio às gargalhadas,
o pobre homem procurava atingir com bengaladas, até mesmo as pessoas que
estavam do lado de fora do colégio, até que se aproxima dos alunos a inspetora
Tereza, e tolhe com energia a ação vândala e libertina, na organização das filas para o reinício das aulas daquele
período vespertino.
Permanecem na
quadra de esportes somente os alunos das 5as. séries, acompanhados pelos
professores de Educação Física - "Dona" Déa e "Seu"
Júlio, que treinava voluntários para as
olimpíadas escolares de fim-de-ano.
Eu que sempre me
inscrevera para as disputas de atletismo, nos saltos em altura e com
obstáculos, amarrava os cordões do tênis enquanto descortinava rápido da
memória, os comentários que se faziam sobre o velho corcunda, do pescoço torto:
um poliglota que , devido ao acúmulo de conhecimentos obtidos, atropelava
linguagens, desordenadamente, no desequilíbrio da mente.
Mas só por causa
disso, podia ser repudiado em sua demência e excluido de todo e qualquer
aparato, que em nome do direito à vida todos
merecemos ?...
Comparo
desoladamente, que na contemporaneidade, são tantos os repudiados, discriminados, desvalorizados, por certo
como este nosso Pedro: dos exilados aos asilados, dos sem teto aos
analfabetos, dos sem terra aos "bóias-frias", estrangeiros, seringueiros,
aidéticos, tetraplégicos, até aos nossos índios, artistas, professores,
viúvas, vozes abafadas, e
"incômodas" numa sociedade que faz da ação da cidadania contra a fome de um dia, sua falsa ventura.
A todos eles,
os Pedros que Deus ama, trago um verso
calado, livre, no coração:
Pedro, um dos
filhos meus/ por tudo o que já sofreu/ diante da vida faz-se manso/ e ainda o
oprimem os ateus:/ - Pedro, pescoço de ganso!...
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