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quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Primeira colocada no Primeiro Concurso de Crônicas de São Simão

CRÔNICA: Pedro Ganso
(Amarós)

                                                                                                "Quanta gente, que ri, talvez existe
                                                                                                cuja única ventura consiste
                                                                                         em parecer aos outros venturosa"...

Década de 60, meados dos anos 1962/1965, dependências internas  do CAVIGA (Colégio Capitão Virgílio Garcia), cidade de São Simão, município de Ribeirão Preto, cidade intitulada  "Vale da Saúde", por haver protegido em outras épocas, seus habitantes, de um surto virótico epidêmico que atingiu quase toda a redondeza, exceto aquela cidade, com seu clima favorável, situada entre os vales.
Foi lá onde conclui com bastante êxito meus estudos de primeiro grau.
Na saída do páteo escolar, distribuidos em filas, milhares de alunos do ginásio, clássico, científico e escola normal cumprem a rígida disciplina interna, encaminhando-se para o horário de descanso; Ao terceiro toque do sinal, esparramam-se e se avolumam ao redor das altas grades que circundam o colégio, situado entre ruas que jamais foram afastadas, ( não obstante os inúmeros abaixos assinados da comunidade local e das autoridades escolares daquela cidade).
Aos gritos, disputam os lanches, que em sua variedade, faziam enorme sucesso : dos salgadinhos a sorvetes em forminhas de gelo, até tamarindos e uvas japonesas - frutas públicas colhidas pela petizada da redondeza, que no afã da concorrência escalavam oportunamente altas árvores, buscando priorizar o gosto colegial.
O alvoroço é grande, o tempo pouco , as emoções!...
...Sempre bastantes, principalmente quando a atenção de alguns alunos é voltada para o início da ladeira que conduz ao colégio, onde, trôpego e alinhado,  se aproxima  com seu chapéu, se bem me recordo, marca "Prada", combinando com o terno de linho engomado, sapatos envernizados e uma bengala de madeira de lei adornada em beirais de prata, o nosso  distinto personagem (distinto demais!) para o estilo da época.
- Lá vem ele, pessoal!...
- Vem manso como sempre...
- Querem ver como ele acelera rápido e chega até aqui num minuto?
Todos queriam, é claro e sabiam exatamente como se divertir com tal proeza.
-  Pedrooo! Hei, Pedro! O que é que hoje trazes nos livros prá mim: Francês, Inglês ou Latim?...
- Diz em Português, Pescoço de Ganso...
O velho, alquebrado e extenuado ante as limitações que a idade, a deficiência física e as más condições da caminhada lhe impunham, visivelmente contrariado com as costumeiras injúrias,  extravasa o cansaço erguendo sua bengala e proferindo ameaças aos importunos, que as revidam:
- Não chegue muito perto que a grade está eletrificada,  Ganso...
- Estica o pescoço, quem sabe ele nos alcança...
Em meio às gargalhadas, o pobre homem procurava atingir com bengaladas, até mesmo as pessoas que estavam do lado de fora do colégio, até que se aproxima dos alunos a inspetora Tereza, e tolhe com energia a ação vândala e libertina, na organização das  filas para o reinício das aulas daquele período vespertino.
Permanecem na quadra de esportes somente os alunos das 5as. séries, acompanhados pelos professores de Educação Física - "Dona" Déa e "Seu" Júlio,  que treinava voluntários para as olimpíadas escolares de fim-de-ano.
Eu que sempre me inscrevera para as disputas de atletismo, nos saltos em altura e com obstáculos, amarrava os cordões do tênis enquanto descortinava rápido da memória, os comentários que se faziam sobre o velho corcunda, do pescoço torto: um poliglota que , devido ao acúmulo de conhecimentos obtidos, atropelava linguagens, desordenadamente, no desequilíbrio da mente.
Mas só por causa disso, podia ser repudiado em sua demência e excluido de todo e qualquer aparato, que em nome do direito à vida todos  merecemos ?...
Comparo desoladamente, que na contemporaneidade, são tantos os repudiados,  discriminados, desvalorizados,  por certo  como este nosso Pedro: dos exilados aos asilados, dos sem teto aos analfabetos, dos sem terra aos "bóias-frias", estrangeiros, seringueiros, aidéticos, tetraplégicos, até aos nossos índios, artistas, professores, viúvas,  vozes abafadas, e "incômodas" numa sociedade que faz da ação da cidadania contra a fome de um dia, sua falsa ventura.
A todos eles, os  Pedros que Deus ama, trago um verso calado, livre, no coração:
Pedro, um dos filhos meus/ por tudo o que já sofreu/ diante da vida faz-se manso/ e ainda o oprimem os ateus:/ - Pedro, pescoço de ganso!...

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